Como já havia nos aconselhado José Saramago “é preciso sair da ilha para ver a ilha”. Esse procedimento pode ser utilizado tanto para nos conhecermos melhor quanto para conseguirmos enxergar as transformações que acontecem ao nosso redor. Muitas vezes, mergulhados nas nossas rotinas e obrigações, mal temos condições de responder satisfatoriamente às demandas e responsabilidades diárias, ligamos o piloto automático e lidamos com nossas tarefas da melhor maneira possível. Mas o “mundo” não deixa de acontecer porque não prestamos atenção e é por isso que precisamos “sair” para conseguir ver, ainda mais quando se trata de NFT Art.
Na primeira quinzena de março deste ano, a venda do NFT do artista Beeple foi noticiada à exaustão e também foi responsável por colocar blockchains, criptomoedas e NFT’s definitivamente no mapa. Agora me ocorre que esse acontecimento parece já ter alguns anos e não alguns meses, talvez seja esse tão obtuso 2021, talvez seja a minha dedicação ao assunto, não tenho certeza. A única coisa certa é que o metaverso, contrariando alguns prognósticos, continua firme, ainda que virtual.
Trocadilhos à parte, em uma entrevista para a Época Negócios, a futurista (veja só, ela não é vidente!) Amy Webb foi bastante categórica: “Eu acredito que, daqui a dez anos, vamos olhar para o metaverso da mesma maneira que olhamos hoje para a internet. Ninguém fala mais sobre a internet, ela apenas existe. Quando falamos em metaverso, estamos nos referindo a diferentes tecnologias que simulam ou recriam experiências do mundo real de maneira imersiva, com a adição de novos elementos. Há um leque de ferramentas envolvidas. Além da alta conectividade, são necessárias tecnologias como realidade aumentada, realidade virtual e ainda realidade reduzida – quando você tira coisas do ambiente real para simular uma situação”.
Na esteira desses avanços tecnológicos temos as blockchains que proporcionam transparência e descentralização. Com a implementação de contratos inteligentes temos a possibilidade de transformar as mais variadas criações em NFT’s, garantindo, dessa maneira, autoria, autenticidade e recebimento de royalties por vendas futuras. Se eu tivesse que indicar quais as principais vantagens trazidas por esse advento eu diria: soberania e queda de algumas barreiras de entrada para artistas. Mas sem dúvidas, não posso deixar de mencionar a irrupção de novas técnicas de criação, novas formas de perceber, interagir, consumir e distribuir obras artísticas; tudo isso com a tão almejada compensação apropriada, tanto do ponto de vista cultural quanto do financeiro.
Uma reportagem do dot.LA mostra o exemplo de três criadores de coreografias famosas no Tik Tok que transformaram suas performances em hologramas (que podem ser aplicados em realidade aumentada) e NFT’s. Essas danças viralizam e são copiadas por milhões de usuários no mundo inteiro e o NFT surge como uma possibilidade real de trazer a tal compensação apropriada para seus autores. Nesse cenário também podemos pensar em artistas da música, dança, performance, videoarte, etc.
Muitos falam sobre revolução, eu prefiro usar esse termo com cautela, para mim revolução requer ruptura. Eu não vejo como ruptura, mas sem dúvidas presenciamos o início de um novo capítulo na história da arte. Eu não creio na ruptura, pois o lado virtual não anula o físico e vice-versa. Para mim eles correm em paralelo com a possibilidade de entrelaçamentos e trocas. Também não creio que o NFT seja o fim, mas trata-se de um momento de passagem.
Uma das perguntas que ainda aparecem com frequência é “mas por que comprar se eu posso ver, assistir ou até copiar?”. Para responder adequadamente a essa questão seria necessária uma pesquisa, mas por enquanto podemos pensar em outros questionamentos para ajudar. A Monalisa (voltamos a ela) talvez seja uma das pinturas mais reproduzidas, e quiçá vistas, do mundo. Se ela fosse colocada a venda alguém duvidaria de que a disputa por ela seria acirrada? Ah, mas a Monalisa é a Monalisa. Sim, fato. Mas quantas pessoas no mundo teriam condições de concorrer? Bem poucas, se considerarmos a população mundial.
Mas da mesma forma que não existem só Monalisas não existem só Beeples. Existem várias categorias de artistas dos mais variados tipos de obras e valores para os mais variados públicos, desde entusiastas/incentivadores até os investidores. Audiência e compradores existem, eles só precisam te encontrar e vice-versa. Quantas coisas compramos em saber bem o porquê? Esse momento de passagem é nebuloso mesmo, mas acrescentaria à fala da Amy Webb que daqui a dez anos nos lembraremos de maneira divertida todo esse estranhamento com relação à compra de NFT’s.
Sabemos que a história da arte “oficial” é basicamente ocidental, aqui ocidente é só Europa e EUA. A hipótese que eu pude vislumbrar, depois de passar os últimos meses estudando sobre o assunto, é que talvez assistimos ao nascimento de um movimento artístico global genuíno que não surgiu agora, mas há alguns anos com a popularização dos computadores, internet e arte digital, essa desmaterialização começou lá atrás e continua em evolução, é por isso que penso que o NFT Art ainda não seja o fim. Mas ele sem dúvidas proporcionou o surgimento desse movimento onde todos podem criar, de acordo com suas próprias referências ou não, e serem recompensados por sua arte. Isso ainda precisa ser melhor elaborado, claro! Mas como disse logo no começo: precisamos sair da ilha para ver a ilha.
“Se os fatos não ocuparem o lugar ao mesmo tempo marginal e sagrado que nossas adorações reservam para eles, imediatamente são reduzidos a meras contingências locais e míseras negociatas” Bruno Latour – Jamais fomos modernos