Dia 08 de março, comemoração do Dia da Mulher, foi ontem, mas não deixaremos essa data tão importante e simbólica passar em branco. No texto de hoje conversaremos sobre uma das maiores fotógrafas do mundo (na minha modesta opinião), sem dúvida uma das minhas favoritas, Claudia Andujar. Mas o que ainda pode ser dito sobre a Claudia? Eu acredito que sempre existirão ótimos motivos para abordarmos a sua fotografia. Sua obra é atemporal e com o passar dos anos sempre ganha uma nova camada de possíveis leituras e ressignificações.
Em 2020, durante a 25ª edição do Festival É Tudo Verdade, tive a oportunidade de assistir ao documentário “GYURI”, de Mariana Lacerda, que reconta a trajetória da Claudia. Desde a fuga da Europa durante a 2ª Guerra até o seu encontro com o povo Yanomami. Com as participações do ativista Carlo Zacquini e do filósofo húngaro, radicado no Brasil, Peter Pál Pelbart podemos acompanhar, com muita sensibilidade, o seu reencontro com o líder e xamã Davi Kopenawa. O filme é recheado com as fotografias de Claudia e ressalta sua participação ativa na luta pela demarcação das terras Yanomami.
Em 19 de agosto de 2019, uma segunda-feira à tarde da qual jamais me esquecerei, o céu escureceu em São Paulo. A noite precoce era um grito de socorro vindo do norte, a Amazônia estava em chamas. Mas o que ainda não sabíamos é que ela também poderia ser interpretada como o prenúncio dos tempos mais sombrios que precisaríamos enfrentar. O primeiro caso da Covid-19 aconteceria em dezembro daquele mesmo ano. Não demorou muito para o livro “A queda do céu”, registro do pensamento de Davi Kopenawa feito pelo antropólogo francês Bruce Albert, ganhar destaque, abaixo compartilho um trecho que está na abertura do livro:
“A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”.
Davi Kopenawa – A queda do céu
A história de vida da Claudia é sim digna de filme e em 2011 eu tive o privilégio de ouvir essa história ser contada pela própria! No então Centro de Cultura Judaica (hoje Unibes Cultural) houve a exposição “Marcados para”, com a série fotográfica Marcados, e como parte da programação aconteceu esse encontro com a fotógrafa e alguns representantes Yanomami. Foi um momento de muita emoção e troca.
Claudia nasceu na Suíça, mas passou a infância em Orádea (hoje Romênia). Para quem não sabe, o pai da Claudia, engenheiro húngaro e judeu, e boa parte dos parentes paternos foram mortos nos campos de extermínio nazistas. Inclusive Gyuri (título do doc), seu colega de escola e primeiro amor que morreu em Auschwitz em 1944. Sabemos que judeus, à época, eram marcados com uma estrela de Davi amarela costurada à altura do peito. Eram marcados para morrer.
Claudia e sua mãe, com muito custo, conseguiram fugir para os EUA e posteriormente Claudia mudou-se para o Brasil. Durante os anos 1980, em uma expedição de vacinação do povo Yanomami, ela era encarregada de fazer o retrato de cada um, com uma placa com um número, para que fossem identificados e saber quais doses da vacina já teriam tomado. Eram marcados para viver.
O contraste, tão caro à fotografia, se faz presente não apenas nas suas imagens, mas também na sua vida. Sensibilidade e força, poesia e inconformismo, registro e ação, beleza e potência, crítica política e enaltecimento dos mais vulneráveis. Na série Marcados podemos apreciar tudo isso e ainda testemunhar a sua atualidade. A primeira pessoa a receber a vacina contra covid-19, no Brasil, foi a enfermeira Mônica Calazans. De lá pra cá tornou-se corriqueiro compartilhar nas redes o momento de vacinação e mostrar a carteirinha, mais uma vez marcados para viver.
Nossas florestas, bem como os povos originários, continuam sob ameça. Uma pandemia que colocou à prova nossa humanidade. A esperança de sobrevivência reside na vacina. Um passado que teima em se repetir ou uma lição que nos recusamos a aprender? Revisitar a obra da Claudia Andujar nos traz esperança, mas também um alerta: todos somos vulneráveis. Cabe a nós não deixar que o céu desabe por completo e irreversivelmente.
Em outubro de 2020, a Fundação Mapfre inaugurou, em Barcelona, o KBr Centro de Fotografia. KBr é o símbolo do brometo de potássio, utilizado na fotografia analógica, e esse é um espaço totalmente dedicado à fotografia: exposições, biblioteca e diversas atividades. No dia 26/02 foi a abertura da exposição Claudia Andujar que ficará até 23/05, confira o site.
TEASER_GYURI from Mariana Lacerda on Vimeo.