NFT: arte e mais representatividade para grupos historicamente negligenciados

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Com o boom ocorrido há pouco mais de um ano, o NFT, ou token não-fungível, se não provocou uma revolução certamente ocasionou um grande abalo nas estruturas do universo das artes visuais.

Entra ano, sai ano, chega março, o mês das mulheres, e o momento de mais uma vez deixar algo bem claro: não queremos flores, queremos equidade. Como Simone de Beauvoir já afirmava, ainda no século XX, basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. A crise generalizada provocada pela pandemia só fez confirmar essa observação, uma porção da população sofreu muito mais as consequências trazidas pelo vírus e seus desdobramentos: as mulheres. Março é o mês de mobilizar e alertar corações e mentes contra as injustiças de gênero e isso também engloba o universo das artes visuais. No texto a seguir veremos que a tecnologia blockchain e o NFT podem auxiliar grupos geralmente excluídos.

Uma pesquisa publicada pelo site Artnet, em 2019, mostrou que as vendas, em leilões realizados entre 2008 e os primeiros 5 meses de 2019, de obras de artistas femininas representam apenas 2% dos mais de $196,6 bilhões movimentados nesse período, aproximadamente $4 bilhões. E para termos um parâmetro, durante o mesmo período só Pablo Picasso vendeu $4,8 bilhões, um único artista (homem) vendeu mais do que 6.000 aristas mulheres, foram necessárias 6 mil mulheres para que os números chegassem “próximo” a Picasso. E este é apenas 1 exemplo, como nos diz a pesquisadora Marina Gertsberg, “compradores ainda são relutantes em pagar altos valores para trabalhos de artistas mulheres”.

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Desigualdade de gênero

Mas se o estado das coisas no mundo físico demora para apresentar alguma melhora, no universo das blockchains há uma esperança “concreta” de que a história possa ser diferente para a ala feminina. Pelo menos é nisso que a curadora Tina Ziegler aposta em entrevista para o site Creative Bloq. A curadora e colecionadora de arte reuniu algumas das melhores artistas femininas de NFT do mundo sob o mesmo teto para a mostra de arte Creative Debuts x Adidas London: International Women’s Month, realizada em 17 de março.

Tina acredita que os NFT’s representam um impacto sem precedentes na arte e comenta que “realmente queria apresentá-las, as visionárias, as mulheres que estão liderando este espaço NFT e elas realmente abriram o caminho para muitas, muitas artistas seguirem”. Ela ainda chama atenção para outras características importantes:

“Não é só igualdade de gênero, mas também é demográfico; diversas origens étnicas, orientações sexuais, é extremamente equilibrado. O espaço NFT é realmente sobre quem quer entrar nele, não há realmente outras barreiras além da educação e gastar tempo em seu computador, o que obviamente pode ser diferente para as pessoas. Mas se você tiver acesso à internet, será tão aceito quanto qualquer outra pessoa neste espaço”.

Para reforçar a importância da presença feminina nas artes, a KPMG Canadá (empresa global de contabilidade) adquiriu o NFT Woman #2681. Trata-se de uma coleção de 10.000 NFT’s, nos moldes dos já famosos Bored Ape e CryptoPunks, mas apenas com figuras femininas produzidas pela World of Women, uma comunidade com a missão de criar coleções belas, diversificadas e empoderadoras, além de uma comunidade próspera. A KPMG desembolsou 25 ETH ($70.000) por um dos avatares.

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Woman #2681

Recapitulando: o que é NFT?

Se você passou uma temporada fora do planeta Terra e não sabe o que são NFT’s, não se preocupe, eu ajudo! NFT é a sigla para token não-fungível. Não-fungível significa, basicamente, algo que é único e não intercambiável. NFT é um código, uma unidade de dados armazenados em uma blockchain, uma espécie de livro-razão digital, que pode ser vendida e negociada.

Um exemplo prático: o cantor Lou Reed lançou o livro “Atravessar o fogo”, todos os exemplares que saíram da gráfica são iguais e podem ser trocados entre eles, porém o exemplar que eu tenho autografado (e tenho mesmo!) é único, ele adquiriu um valor especial com a assinatura do autor, não pode ser trocado entre as demais cópias, mas pode ser negociado como um item exclusivo.

Os NFT’s podem ser associados a qualquer arquivo digital, incluindo imagens, vídeos e até ativos de videogame. Esse registro na blockchain garante que a obra associada ao NFT é autentica e única. A negociação é feita por meio dos contratos inteligentes que garantem os direitos autorais e o recebimento de royalties por vendas futuras aos artistas.

A blockchain possui como características principais a transparência e a descentralização. A possibilidade de mintar (criar o registro NFT) uma obra e negociá-la por meio dos marktplaces trouxe bastante autonomia para artistas e demais criadores.

Leia mais: Tecnologia blockchain para além do NFT

Ciência é lugar de mulher sim!

Alguns exemplos inspiradores:

Margaret Hamilton (cientista da computação): foi diretora da Divisão de Software no Laboratório de Instrumentação do MIT, que desenvolveu o programa de voo usado no projeto Apollo 11, a primeira missão tripulada à Lua. O software de Hamilton impediu que o pouso na Lua fosse abortado.

Margaret Hamilton ao lado do seu código

Margaret Hamilton ao lado do seu código

Filme Estrelas além do tempo (Hidden Figures, 2016): em 1961, em plena Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética disputam a supremacia na corrida espacial ao mesmo tempo em que a sociedade norte-americana lida com uma profunda cisão racial, entre brancos e negros. Tal situação é refletida também na NASA, onde um grupo de funcionárias negras, chamadas de “computadores humanos” – os cálculos extremamente complexos eram feitos à mão –, é obrigada a trabalhar a parte. É lá que estão Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughn (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), grandes amigas que, além de precisarem provar sua competência dia após dia, precisam lidar com o preconceito arraigado para que consigam ascender na hierarquia da NASA. É sem dúvidas um dos filmes mais inspiradores que já assisti.

Jaqueline Góes de Jesus: biomédica brasileira que fez parte da equipe responsável pelo sequenciamento genético do novo coronavírus nos primeiros casos de covid-19 na América Latina. Ela foi homenageada, ao lado de mais cinco cientistas, pela fabricante de brinquedos Mattel, com uma boneca Barbie, como reconhecimento pelo seu importante trabalho.

Barbie Jaqueline Góes

Barbie Jaqueline Góes de Jesus

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Bonecas Barbie Cientistas

 

Mas o assunto não era arte?

Sim, ainda é! É que cada vez mais as fronteiras entre arte, ciência e tecnologia ficam mais fluídas. E é assim também com as realidades virtual e física, atualmente, principalmente depois do período de isolamento – com tantos eventos, trabalho e estudo online –, passamos de um ambiente para o outro com muito mais facilidade.

Arte digital, blockchains e NFT reúnem várias frentes de conhecimento e, à primeira vista, podem parecer um bicho de sete cabeças. Sim, o assunto é complexo, ainda mais para quem não tem muito contato com esse universo. Mas precisamos ultrapassar esse bloqueio inicial se quisermos ocupar esses espaços. É por isso que ler e estudar sobre o assunto é essencial. Aos poucos os processos ficam mais claros e começamos a vislumbrar várias possibilidades.

Um bom ponto de partida seria começar pelas blockchains. A blockchain é uma rede que funciona como uma espécie de livro-razão onde todas as transações confirmadas ficam registradas em blocos que são encadeados. Cada computador possui uma cópia integral da blockchain de modo a garantir transparência e consistência dos dados. Eu só posso negociar o que eu possuo e não há uma maneira de tapear o sistema, pois lembre-se: todo o histórico de transações realizadas está gravado em todos os computadores, não é possível alterar informações no “passado” sendo muito difícil conseguir burlar o sistema.

As transações são confirmadas por meio de um algoritmo de consenso. No protocolo Proof of Work (PoW), ou prova de trabalho, um minerador verifica se o pedido é verdadeiro respondendo a uma pergunta matemática. O minerador que resolver o problema matemático de um bloco, recebe sua comissão e finalmente a transação estará registrada na blockchain e disponível para o público. Esse protocolo demanda muita capacidade computacional, energia e, em consequência, possui taxas mais altas. Com o crescimento do número de transações também tornou-se mais lento. Bitcoin e Ethereum são exemplos de blockchains que utilizam o PoW.

O protocolo Proof of Stake (PoS), ou prova de participação, também é utilizado para a confirmação das transações, mas funciona de maneira diferente. O algoritmo de Proof of Stake usa um processo de eleição pseudo-aleatória para selecionar um nó (node), computador que pertence à rede da blockchain, para ser o validador do próximo bloco, com base em uma combinação de fatores que podem incluir a idade da participação, a randomização e a riqueza do nó. Esse processo requer menor capacidade computacional, menos energia e proporciona taxas mais baixas e ainda maior velocidade de confirmação. Cardano, Solana, Tezos e Terra são exemplos de blockchains que utilizam o PoS.

Cada blockchain possui o seu token nativo, a sua “moeda”, mais precisamente sua criptomoeda, que geralmente é indicada por meio de uma sigla: Bitcoin – BTC, Ethereum – ETH, Cardano – ADA, Solana – SOL, Tezos – XTZ, Terra – LUA, etc. Essas são as moedas utilizadas nas transações. Bitcoin é a primeira geração de blockchain, seus contratos inteligentes restringem-se às transações de BTC (mineração, compra, venda). Com a Ethereum, segunda geração, houve a implementação dos contratos inteligentes para a realização de mais atividades inclusive o registro dos NFT’s. A Ethereum pode ser considerada uma evolução do Bitcoin e as blockchains que vieram depois da Ethereum, que são da terceira geração, são tentativas de melhorar a antecessora. As blockchains estão em constante aprimoramento.

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Criptomoedas

Considerações finais

“As criptomoedas pegam essencialmente no que o dinheiro é para muitas pessoas e utilizam a tecnologia para o tornar mais transparente e menos centralizado, para que todos tenham um lugar à mesa quando se trata do futuro das finanças”.

Essa frase foi dita por Elisha Owusu Akyaw, em entrevista de 2020 para o DW, comerciante de criptomoedas, que vive em Gana, e fundadora da publicação digital BlockNewsAfrica. O continente africano, entre julho de 2020 e junho de 2021 registrou um crescimento na captação de criptos de quase 1.200%, tornando-se um dos mercados com maior índice de adoção de criptomoedas do mundo.

A adesão mais maciça por parte da população ainda possui muitas barreiras como necessidade de inclusão digital e aumento da escolarização da população, mas ainda assim as pessoas, principalmente aquelas da diáspora que precisam mandar dinheiro para casa, têm encontrado nas criptomoedas uma saída para os obstáculos impostos pelo sistema financeiro tradicional. O difícil acesso ao sistema bancário e os altos valores das taxas que são cobradas para se fazer as remessas de dinheiro são alguns deles. Além disso a instabilidade das moedas nacionais e a hiperinflação, que faz com que o dinheiro “normal” se desvalorize muito rápido, também são levados em consideração na hora de optar-se pelas remessas via blockchain.

Aqui no Brasil um projeto pioneiro para a criação de uma criptomoeda indígena, que previa a geração de renda e também a otimização as trocas entre os diferentes territórios originários, infelizmente foi cancelado em 2019.

Um dos comentários que mais se vê com relação à tecnologia blockchain é que ela não vai resolver problemas como fome e miséria, e as pessoas comentam isso como se todas as soluções criadas até então tivessem sido bem-sucedidas, o que, obviamente, não é o caso. Um estudo mais aprofundado e a observação das várias possibilidades trazidas com essa tecnologia nos mostra que ela pode sim atuar positivamente em diversas frentes. Assim como no mundo físico as fraudes existem, crimes podem ser cometidos em qualquer ambiente, é por isso que o estudo sobre o assunto é essencial.

Como já disse algumas vezes, não, a tecnologia blockchain não é a solução para todos os problemas, mas tampouco o é uma viagem espacial ou um algoritmo, criado por empresas que captam e utilizam nossos dados indiscriminadamente, que determina nosso imaginário. A construção de um mundo mais justo e inclusivo atravessa os mais diversos assuntos.

Da mesma maneira que é possível vender obras de arte em NFT com mais autonomia, também é possível garantir acesso às operações financeiras a uma parcela da população que é geralmente negligenciada pelo sistema “normal” ou ainda produzir um dApp (aplicativo descentralizado) que coordena o recolhimento e redistribuição de mantimentos doados de forma transparente e sem a utilização indevida de nossos dados. Os códigos são abertos e as ferramentas estão disponíveis, o que determinará a qualidade da blockchain – se boa ou ruim – é o uso que faremos dela. Que esse espaço possa ser ocupado pelas pessoas realmente interessadas em mudanças positivas.