A pergunta sobre fine art pode soar estranha e até alarmista, mas o que eu gostaria de propor neste artigo é um exercício de reflexão. Desde março – sem levar em conta as pandêmicas, é claro – as notícias que têm ganhado mais tempo da minha atenção são as relacionadas ao NFT. Tenho me esforçado para entender esse novo mundo por obrigação e, também, por curiosidade. Não podemos negar que esse advento trouxe muitas possibilidades e já mostrou que não se trata apenas de uma onda, mas sim de um novo passo no que diz respeito aos colecionáveis e, talvez principalmente, à arte.
Ficção científica é sem dúvidas um dos meus gêneros favoritos, seja na literatura e/ou no cinema, uma boa história daquelas de dar nó no cérebro sempre vai me atrair. Dentro desse universo, um dos temas mais explorados é a oposição (ou integração) humano x máquina. Em alguns cenários a humanidade é superada pelos computadores e robôs como em “Matrix”, em outros superamos a fragilidade e finitude do corpo orgânico e nos transformamos em dados que podem ser “instalados” em novas “capas”, como em “Altered Carbon” e dessa maneira conquistamos a eternidade, pelo menos enquanto a integridade do nosso arquivo for mantida. Próteses e implantes já existem e estão cada vez mais sofisticados. Nos transformarmos em dados, apesar de ter muita gente apostando nisso, creio que não será possível, mas isso só o tempo (muito!) dirá.
O desenvolvimento de novas tecnologias, que tem ocorrido com cada vez mais frequência nos últimos anos, parece nos aproximar do que até então era visto como ficção. Isso, como qualquer novidade, provoca reações e sentimentos diversos, não podemos nos esquecer que a tecnociência avança, mas nós continuamos Homo sapiens, adaptáveis sim, com uma bagagem cada vez maior também, mas no final das contas humanos com todas as limitações que vêm no pacote desde os tempos do paleolítico.
No final de março foi inaugurada em Nova York a primeira galeria totalmente dedicada à arte digital (Superchief). Com as obras projetadas em grandes telas a ideia é que visitantes e potenciais compradores vejam os trabalhos e tenham a experiência da maneira que foi pensada pelas/os artistas. Nesta semana, de acordo com a revista Veja, o MAM (SP) anunciou que vai estrear no braço educativo do famoso jogo Minecraft que será disponibilizado para uso nas escolas. A fronteira entre físico e digital fica cada vez mais sutil.
O ano oficial de nascimento da fotografia é 1839, quando foi anunciado o daguerreótipo. Em 182 anos as técnicas evoluíram dos químicos fotossensíveis até o sensor das câmeras digitais/smartphones e as impressões fine art. Agora vemos a fotografia aderir ao NFT, ainda com uma presença tímida, mas que tende a ganhar mais corpo tão logo o processo esteja mais disseminado e assimilado. A fotografia não foi reconhecida prontamente como arte e até hoje ainda é possível ver um ou outro comentário do tipo “fotografia não é arte”. O surgimento da fotografia digital também provocou resistência, mas com o aprimoramento das tecnologias (hardware e software) e com a otimização do fluxo de trabalho proporcionada essa resistência foi vencida.
Uma imagem digital de qualidade demanda uma impressão que fique a altura. Foi a vez do desenvolvimento da impressão fine art. Com papéis e pigmentos especiais a qualidade e a longevidade da impressão estava garantida. Mas ainda há quem diga que a impressão fine art não é fotografia, mas essa é outra discussão. O ponto é: novidade sempre provoca insegurança.
O boom do NFT me fez pensar se a fine art não estaria fadada a se tornar mais um processo histórico, uma espécie de calótipo do séc. XXI. Esse pensamento é despretensioso, mas ilustra bem a velocidade das mudanças pelas quais passamos. No caso da fotografia, pouco menos de 200 anos dentro de uma perspectiva histórica é pouquíssimo tempo. A (considerada) primeira fotografia da história foi produzida por Joseph Nicéphore Niépce em 1826 (Vista da janela em Le Gras), ele chamava a técnica de heliografia. Em 2019 a Event Horizon Telescope, rede de oito observatórios ao redor do mundo, divulgou a primeira foto de um buraco negro supermassivo. Quando contrastamos esses dois acontecimentos temos uma boa ideia do avanço e sua velocidade.
O NFT nos garante uma obra única, sua provenance digital comprova sua autenticidade. Ao pensar em Daguerre não pude deixar de notar certa correspondência. O daguerreótipo também é uma obra única. A imagem é formada diretamente na placa de metal, não sendo possível fazer cópias, o que não acontece com as imagens digitais, claro, mas o registro na blockchain, que possibilita aferir a sua autenticidade, funciona aqui na minha abstração como uma espécie de buraco de minhoca que aproxima dois extremos. Uma espécie de retorno ao fundamental da arte: singularidade.
Apesar de ser amante de sci-fi devo confessar que ainda prefiro livros físicos, uso caderno e caneta e amo ver uma fotografia impressa. Aliás o processo completo: escolher o papel, a impressão e a montagem; olhar para uma imagem e “escutar” o que ela pede ainda me fascina. Quando me lembro dos processos analógicos/históricos então o encanto é ainda maior. Reforço que nada disso me impede de ver com bons olhos as inovações. Diferentes vertentes podem e devem coexistir e tudo depende do uso que fazemos, erros e acertos são de nossa responsabilidade. Num futuro, talvez não muito distante, as pessoas poderão acessar uma sala de exposição e se encantarem ao ver lado a lado um daguerreótipo e uma fine art como exemplos de processos históricos e que continuam a existir apesar das telas de projeção de NFT’s.